domingo, 21 de abril de 2013

Algo sobre solidão e morte

Você feriu minha carne, roeu minhas unhas e sequer sentiu-se tocado quando soou em teus ouvidos a fúnebre música de uma nota só.
Arrancou-me as entranhas, comeu minhas vísceras e pintou os lábios com o meu sangue vermelho amargo. Você foi festejo impróprio mesmo tendo nos olhos acúmulo lacrimal. Desfez-se de uma vez só e nunca revelou o motivo central.

Você se perdeu em seu próprio sonho; caiu num abismo por um erro, num buraco cavado por si mesmo sem fundamento algum e suicidou sem querer, abdicando a mim.
Descobriu após dois dias a carne cujo odor enfeitiçava qualquer ser vivo há um quilômetro e testemunhou a beleza do corpo em ato inicial de decomposição. O punhal, sujo do sangue que te fez batom ficou guardado por entre o peito, no oco que deixou ao arrancar o órgão pulsante e alimentar-se, engolindo-o de uma só vez, sem dó, piedade ou algo parecido.
Teus olhos queimavam enquanto os dentes sorriam a trabalhar pesado, mastigando a carne viscosa e suculenta.
Acariciou-me os cabelos,
encostou tua face maldita na minha sem vida
e nada mais pude sentir.
Tua respiração ofegava, a minha inexistia e, mesmo assim, não havia tragédia pior que a tua.
Nem meu corpo morto,
nem meu coração arrancado ou minhas veias rasgadas
nem o ato quase interminável da minha morte em pequenas doses
causou dor tão profunda quanto a tua! Teu coração quer rasgar-se, mas ele próprio não há. O pulmão não consegue responder aos cigarros constantemente empurrados com toda rudez e a tua crise de asma a cada trinta minutos faz com que sintas o gosto da morte que não chega nem com a mais forte das preces.
Encontra-se sentado numa poltrona preta e tão suja quanto o resto desse teu habitat entupido de calamidades e de uma dor que não é sentida. Você não consegue sentir a própria dor. Teus ouvidos estão surdos e não sente fome nem sede nem vontade de nada. Não se arrepende, não está feliz e finge que lida com indiferença com as lembranças do dia em que me atacou por ter te tocado a face e olhado nos teus olhos que estão hoje cegos por um pudor inexplicável.
Estou em alguma parte te observando e de repente estou em todas as partes e você não sabe para onde e nem por que olhar e nem eu entendo a minha função essencial na tua inglória, em teu poço de tormentas e dores agudas que insistes em negar. Não há negrume em nenhuma das partes e posso sentir e até ver, em diferentes cores, o nível da tua dor que aumenta a cada momento.
Agora você levanta e abre a geladeira, mas a cerveja acabou e a vodca foi derramada na hora ápice do ódio... Os cigarros já não fazem efeito, mas tua asma continua a atacar de trinta em trinta minutos;
então você vai até o quarto e encara a sua cama como se houvesse alguém ali – ou talvez o faz pela certeza de não ter ninguém em parte alguma dali.
Está sozinho em uma casa azul de dez cômodos e em um deles encontra-se um corpo, o meu corpo, morto, a se decompor e, além do oxigênio, existe uma grande dose de psicodelia no ar.
Você levanta, mas logo volta para a poltrona de frente a TV, porque todos os outros lugares parecem ser grandes e ocupados demais pelas outras partes da tua imensa solidão. Não consegue suportar a ideia de ligar a TV e dar de cara com todos aqueles rostos sorrindo e falando e fingindo... Muito menos o rádio e suas canções de amor que tocam sempre nesta hora, às 01:13 da manhã. Pode ouvir o barulho da chuva e cada pingo é-lhe um tiro na cara, que não causa lesão.
Você volta ao quarto de paredes manchadas exatamente sete dias após o assassinato e encontra-se mais morto que eu. Então arranca o punhal do meu corpo pútrido e enfia-o em seu próprio peito. Vê meu rosto espantado e dolorido de relance.
Sente o punhal entrar por entre o peito e perfurar vagarosamente o coração.
Foi a primeira vez que chorou.

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