quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O asilo da Rua Santo Antônio

Ontem visitei o asilo que sempre me atrapalha o andar por ter a calçada estreita demais. O azul da janela e o cheiro de solidão me contaminavam há uma distância exemplar. Ouso julgar impossível passar por aquele lugar, atravessar aquela rua, sem ser tocado por uma gota de melancolia. Talvez seja paz, ou a espera da morte que por vezes demora uma eternidade, enquanto você sussurra e quase pragueja-a, implorando a sua chegada.
Ao atravessar o portão também azul, dei de cara com uma senhora, oitenta e poucos anos, cuja pele, completamente enrugada, guardava resquícios de nada mais que vida; ao olhá-la, senti-me em sua pele, a viver dia após dia, embriagada pelo sol que não cessa, dividindo quarto com tantos outros velhos rabugentos, indiferentes com a vida. A verdade é que ali, todos compartilhavam do mesmo sentimento de indiferença. Vi-me de joelhos ao pé da cama, em noite passada, implorando a Divindade qualquer, o fim próximo. Nunca há motivo concreto, esse desejo, muitas vezes voraz, parte do interior, do abstrato que mostram as telas de tintas misturadas. A maioria delas são a bagunça interior individual, o que não condiz apenas com época nem clima, mas com o poder de suportar.
A senhora caminhava, em curtos passos, numa camisola rosa desbotada que quase mostrava o corpo nu, que já não causava acentuação alguma. Que já não era saliência, tampouco vulgaridade. Minha presença mal educada, chegada logo após o almoço, foi de encontro a hora dos remédios. Vi a fila de idosos resmungões, desgostosos. Cada um com o olhar mais abandonado que o outro. E os filhos, netos, sobrinhos? Há quem se perca nesse tão extenso mundo. Vai ver não conseguiram o caminho de volta, é a esperança que têm. E aquela conversa toda, sem uma palavra sequer, marcava-me profundamente, sentia a solidão me afogando num mar infinito. Algo atravessando-me as entranhas e me rasgando. Talvez fosse fome, mas a hora do almoço já havia passado.
A necessidade da minha visita que, para ser sincera, nada alterava na vida cotidiana daquelas pessoas, partiu de mim sem porquê definitivo. Poderia ser até o querer ver vidas piores que a minha, mais cansativas e sem oxigênio, para curar a minha própria solidão definitiva, a minha conduta exagerada e pouco perspicaz de minha existência. Talvez fosse para enxergar o futuro e ter certeza de que eu não o suportaria.
Após a hora dos remédios, cada velho tinha direito ao cochilo, ao café... tinham direito, até mesmo, a solidão compartilhada. Mas eles mal se olhavam. Não conseguiam admitir nem para si mesmos que tivessem sido largados, que no mundo, nada mais lhes restava, além do desdém.
Mas havia um sorriso. Um sorriso oblíquo e sem sentido. Em meio àquele horror de melancolia, depressão e sedentarismo, pude enxergar um sorriso cujos dentes, tortos e amarelados, deixavam-no ainda mais especial e chamativo.
Aquele homem desconhecido. Sei que chegava quase aos noventa, seu nome não saberia dizer. Pele negra, quase dois metros de altura encolhidos numa corcunda grande. Acanhei-me a perguntá-lo o motivo, pude apenas observar os traços, a cicatriz no rosto, um corte obtuso, e o sorriso amarelado e enorme.
Fugi.
O sorriso me perseguia. Era enlouquecedor pensar que o pudesse vir de um ser abandonado, misturado a um bando de morto-vivos, que apenas esperavam, impacientes, a hora de mergulhar nesta terra vermelha do sertão baiano... Mas, o velho sorria. E, de repente, meus motivos, mesmo os abstratos, mesmo os bagunçados e interiores, não mais faziam sentido e nem o podiam. Como concorrer com as nove décadas provavelmente mal vividas daquele senhor?
Fugi do asilo. Mas, aquele sorriso até hoje não se desprende da minha memória.

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